Capítulos (3 de 7) 12 Jun, 2023

6. O Coveiro

Hoje talvez nem tanto, mas antigamente toda cidadezinha tinha seus causos e histórias de assombração, e a crendice popular por vezes dava um certo ar de veracidade à coisa. Antes de todo mundo ter internet e esses serviços de streaming em casa, era comum a turma alugar filmes no fim de semana na locadora do Seu Serafim e ainda só devolver as fitas VHS na segunda. Bolinha alugou tanto aquela fita verde do Rei Leão que acabou ficando com ela quando vieram os DVDs. 

Vez ou outra o irmão mais velho do Carlinhos pegava algum filme de terror, pois com certeza se divertia mais com as reações do caçula do que assistindo o povo morrer. Principalmente com os filmes do Chucky, o qual rendia uma boa dose de sustos e risadas com os gritos do medroso da turma. Com a ascensão do horror nos anos 80 e 90, também cresciam as lendas urbanas. E com o Cemitério das Boas Almas não era diferente. Vários boatos corriam sobre alguma aparição por lá. Almas penadas atormentadas, fantasmas que vinham buscar crianças travessas e claro, a fama também perseguia o coveiro, o Seu Epaminondas. O velho sinistro que andava entre as lápides e falava com o coisa ruim. 


— Tem certeza que o Diogo foi pra lá mesmo? — Lucas perguntou ao Bolinha, levando o olhar para as lápides mais distantes, próximas a uma capela.

— Tenho sim. — Bolinha confirmou. — Tava bem atrás dele, mas o Diogo disparou feito o Flash e eu fiquei atrás de uma árvore mesmo. 

— Então me chame de Ligeirinho, porque quem vai disparar daqui a pouco sou eu! - Carlinhos ironizou contrariado. - Pô, o cara foi logo pro lugar mais sinistro! E se o coveiro pegou ele? 

— Eu num tô nem aí pro Epaminondas! — Lili exibiu o estilingue como a She-ra erguia sua espada antes de se transformar. A loirinha girou o boné pra trás e afirmou convicta: — Ele que venha, minha mira vai ser certeira! 

— Cês perderam mesmo a noção do perigo... Se der errado não digam que eu num avisei. 
— Se der errado Carlinhos, a gente vai tá junto. Igual nas brigas da escola. — encorajou-o Bolinha.

— É isso aí, a gente sempre ajuda. Sempre. — Lucas cerrou o punho e levantou-o. — Rua 13? — Os outros repetiram o gesto, falando o nome da rua onde moravam em coro. "Rua 13!" 
Por fim, o líder da turma deu o comando. — Tá na hora galera... vamos nessa! — O menino de cabelo castanho foi na frente, pegou dois gravetos no chão e os empunhou como se estivesse com espadas. Bolinha o seguiu mastigando um confeito enquanto Carlinhos ousou alguns passos hesitantes.
 
— Anda logo! — A loirinha empurrou o medroso, completando a retaguarda da turma. A quietude tomou conta do lugar novamente enquanto a turma rumava até a capela por um corredor formado de árvores chamadas primaveras. A folhagem era cheia de flores rosas e amarelas que contrastavam com o cinza das lápides. O pequeno santuário ficava mais ao fundo, erguendo-se na típica fachada triangular onde logo acima havia uma pequena cruz. 

O branco das paredes estava um pouco encardido, além de algumas rachaduras e um pouco de mofo que davam um ar meio assustador à edificação. A turma trocou olhares mais uma vez, mas já não podiam voltar atrás. O Diogo podia estar em perigo, e eles não sairiam de lá sem o amigo. De frente para a assombrosa capela, uma porta de madeira meio carcomida estava diante deles. Lucas ergueu uma mão para empurrar e Lili já puxava o elástico do estilingue, pronta para soltar a pedra. Bolinha mastigava com mais intensidade enquanto Carlinhos engoliu um nó na garganta. A turma iria encontrar o coveiro, embora não soubessem que o velho já esperava por eles. 


Lucas empurrou, e a porta se abriu fazendo um rangido horripilante. A turma finalmente pôde ver a assustadora paróquia por dentro. Escura, empoeirada e com santos que pareciam observar os pequenos invasores do recinto que parecia misturar o sagrado e o macabro. A pouca luz do lugar vinha das janelas, onde tons de laranja no céu anunciavam o finalzinho da tarde. Foram adiante cautelosos, com passos furtivos enquanto uma quietude inquietante crescia. Subitamente, o som de algo rasgando chamou a atenção de todos. Quando olharam para trás, Bolinha acabara de abrir um pequeno pacote de pipoca e já mastigava algumas. O gordinho apenas deu de ombros.


? O que foi? Essa pode ser minha última refeição.


? Oh Diogooo! Aparece aí caramba! ? Lili logo quebrou os poucos cacos de silêncio que restavam.


? Xiu! Tá doida menina?! ? Carlinhos pôs uma mão na boca da garota. ? Nunca viu um filme de terror não? O coveiro vai vir direto pra cá!


? Quietos vocês dois! Ele pode tá usando o Diogo de refém e a gente aqui perdendo tempo. ? Lucas argumentou enquanto Bolinha arregalava os olhos. 



? Aí galera... o que que é aquilo lá? ? O gordinho apontou para a frente e nas sombras um vulto negro correu entre os bancos. Carlinhos empalideceu, voltando a benzer-se três vezes. Tentou correr, mas sua fuga foi frustrada por Lili e Bolinha que o seguraram.


? Vocês não tão girando bem da cabeça não, pelo amor de Deus, isso é coisa pra adulto resolver, a polícia, o Batman... qualquer um! Não um bando de pirralhos feito a gente! ? Ao passo que Carlinhos tentava convencê-los a ir embora, Lucas caminhou na direção do vulto. Empunhou os gravetos e quando finalmente chegou perto, um gato preto correu do garoto, partindo para a janela e sumindo entre as lápides.


? Era só um gato. Sério que vocês tão com medo? Esse lugar não me assusta nem um pouco.


? Mas devia... ? Uma voz rouca surgiu na escuridão, enquanto a silhueta do coveiro se aproximava de uma das janelas. Lili logo correu para perto de Lucas com estilingue a postos. Bolinha e Carlinhos também se juntaram a eles.


? Desembucha velhote! Cadê o Diogo? ? A loirinha indagou rispidamente.


? Ele está ótimo... E logo vocês estarão com ele... num caixão! ? E para horror da turma, uma furadeira foi ligada acompanhada duma risada macabra. Carlinhos gritou por socorro, Bolinha começou a chorar e Lucas ficou paralisado de medo. Enquanto o terror se espalhava na face dos meninos, Lili puxou o elástico, mirou e atirou. A pedra voou no ar como uma bala, acertando a janela onde a sombra pairava. Pouco depois, um interruptor fora ligado, acendendo as luzes da paróquia. Lá estava o velho Epaminondas com a furadeira, e ao seu lado, o garoto ruivo que morria... morria de rir, segurando a barriga. 


? Deviam ver a cara de vocês agora! Essa foi histórica! ? Ainda rindo, Diogo apontou para eles, que ficaram sem entender nada. O coveiro tirou a furadeira da tomada e a pôs no chão. Ergueu os braços e pediu desculpas pelo susto. O Seu Epaminondas era calvo, e tinha longa barba branca que o deixava parecido com um Papai Noel. Vestia uma dessas camisas de botão quadriculadas, bermuda camuflada e um par de chinelos nos pés. Diferente de antes, sua voz continuava rouca, mas agora tinha um tom calmo e gentil.


? Desculpem crianças, eu não resisti em pregar uma boa peça em vocês, mas digo logo que foi tudo ideia dele. O Diogo me contou sobre as histórias que falam de mim, e é tudo bobagem. Eu posso ter essa cara feia e enrugada, mas não faria mal a uma mosca! Quem vê cara não vê coração né? E vocês tão certos em desconfiar, tem muita gente ruim por aí, então escutem seus pais quando dizem pra não confiar em estranhos.


? É sério isso? Era tudo... armação? ? Lucas perguntou, ainda confuso.


? E vocês caíram direitinho! ? O ruivo confirmou com um sorriso zombeteiro, já Carlinhos ficou irritado.


? Pô Diogo, a gente ia pensar o quê? Que susto danado cara!


? Ah mas isso vai ter volta um dia, pode esperar... ? Lili advertiu com uma franzida de testa.


? Pelo menos todo mundo terminou vivo. ? Bolinha, já aliviado, voltou a mastigar a pipoca. Apesar da situação a princípio parecer sair de um filme de terror, no fim todos riram. O Seu Epaminondas não tinha nada haver com o quadro que pintavam dele.


? Meu trabalho é bem solitário, não recebo muitas visitas. Minha companhia é aquele gato preto que vocês viram. Chamo ele de Meia-Noite, porque sempre que dá essa hora o danado fica pelo telhado miando.


? E o senhor nunca... viu nenhum fantasma aqui no cemitério? ? perguntou Carlinhos, ainda meio acanhado e um pouco temeroso pela resposta.


? Rapaz, eu espero nunca encontrar um tão cedo, até porque não aguento correr muito. Quando era novo até jogava de lateral e corria um campo inteiro, hoje vou devagarzinho até pra chegar na padaria. Mas é a vida, o tempo voa e de uma hora pra outra, suas costas começam a doer. As minhas? Coitadas, já estão pedindo minha aposentadoria faz tempo. ? Bem-humorado Seu Epaminondas comentou, vendo alguns sorrisos se formarem ao redor. Lili abriu a bolsa de lanches e deu a ele metade do seu cachorro quente. Durante o lanche, a turma ouviu o coveiro contar alguns de seus causos de infância e malassombros, sustos e risadas se misturavam em meio ao gesticular das narrativas. 


Foi uma tarde e tanto, ninguém esperava que a brincadeira fosse terminar daquele jeito. Afinal quem poderia imaginar que o assustador coveiro de que todos falavam era só um senhorzinho simpático? Quando deu a hora, lá pelas cinco e meia, os amigos despediram-se do velho e voltaram para casa com uma história e alguns motivos dar risada depois. Lucas, Diogo, Lili, Carlinhos e Bolinha aprenderam de um jeito inesperado que as aparências enganam e que não se deve acreditar em tudo que se ouve por aí. Enfim, a Turma da Rua 13 desvendou o mistério do agora não tão assombrado, Cemitério das Boas Almas.


Compartilhar:

© 2024 Zinnes. Todos os direitos reservados.

Feito com ❤ por BYCODE AI